Mostra Entre Nós de Margot Delgado e Maria Villares

 

Margot Delgado e Maria Villares festejam mais um encontro nesta exposição a que deram o título feliz de Entre nós. É a comemoração de uma amizade construída na cumplicidade do afeto e do ofício. As duas gravadoras dividem também a vizinhança com as árvores do Alto da Boa Vista. E quando cai no jardim de Margot uma flor da sua magnolia grandiflora, ela a recolhe em desenhos ou leva-a para Maria. Não é uma coisa morta para ser compartilhada, mas em transformação, cujo viço temporário aos poucos se transmuta em secura perene. Ao perder seus fluidos a flor vai assumindo outra matéria, com novas cores e formas. E, não raro, vai alimentar igualmente o trabalho da amiga. No ateliê de Maria, ela se junta aos sambaquis de conchas, pedras e gravetos, outros guardados que guardam outras histórias. Nesta exposição estão lado a lado dois projetos poéticos distintos, mas que têm em comum esse olhar atento para os estados mutáveis do ser.
Inflexão
Margot Delgado vive envolta em apontamentos, poemas e reflexões. Não por acaso em um de seus cadernos ela transcreveu em inglês um trecho do poema Ítaca, de Konstantinos Kaváfis, aqui em tradução de José Paulo Paes: “Tem todo o tempo Ítaca na mente. / Estás predestinado a ali chegar. / Mas não apresses a viagem nunca. / Melhor muitos anos levares de jornada / e fundeares na ilha velho enfim, / rico de quanto ganhaste no caminho, / sem esperar riquezas que Ítaca te desse”.
Em suas andanças, sob os céus do mar ou do sertão, Margot fotografa nuvens, como protagonista de sua viagem, sem pressa de chegar. Desde os anos 1980, as nuvens preenchem páginas de pequenos cadernos e inspiraram uma primeira aquarela. O assunto também virou pintura e se ampliou até render uma instalação em 1993, em que um céu aquarelado de 6 metros quadrados ocupava todo o vão do prédio da Santa Marcelina.
O que ela mostra agora são sequências de imagens captadas pela máquina fotográfica e migradas para 16 pequenas matrizes de cobre. Essas fotogravuras, em várias gradações de negro, foram impressas em papel de arroz japonês feito à mão, uma seguindo a outra como uma linha no horizonte, fotogramas de um documentário em preto e branco. Outra série menor foi tingida por amarelos solares. O suporte sutil mostra-se digno dessas massas efêmeras, em constante transformação.
Na impressão, as matrizes são às vezes sobrepostas, as posições trocadas, criando indefinições, áreas de sombra, imagens infletidas. Os recursos da técnica servem ao interesse da artista em relativizar o foco, em criar certa fricção entre o ser e o nada, confundindo o olhar que ora vê nuvens, ora marés ou rochas. Margot pode partir do real, mas o transforma em realidades escorregadias, encobertas por véus que suspendem as certezas. Para ela, “a representação é um mistério” e o trabalho se faz sobre a gama dos sentimentos do outro.
Seu tempo é elíptico, volta-se frequentemente ao passado, a elaborações anteriores, para retomar ideias e deixá-las novamente em aberto. Não é só uma maneira de refletir sobre o caminho já percorrido, mas de acenar com outras possibilidades. Para isso ela se utiliza de velaturas, entonações, inflexões, que, como ensina o dicionário, são “desvios da posição normal”.
Nas vitrines desta exposição estão fotografias que Margot fez de trabalhos anteriores, às vezes recortes, colagens ou detalhes ampliados, e que foram impressas em papel Hahnemühle, usando para isso os recursos de máquinas copiadoras. Ao lado dessas delicadas manchas poéticas, desenhos, aquarelas e poemas contam um pouco da natureza da artista e de seu processo de criação. Amorosamente atenta à vida e às suas manifestações, seu balé sugestivo de nuvens envolve a todos os viajantes solitários, predestinados a chegar.
Em um dos trabalhos, oculta por um véu branco, pode-se ler a palavra “saudade”. Na pequena aquarela, o vão entre as criaturas em negro é quase um grito e em um de seus poemas ela pede: ”você pode me dizer uma vez mais / aquelas palavras que me faziam / voar?”.
Vera d’Horta / março 2015

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